[Opinião] Dois pesos, duas medidas: MC Poze, Roberto Jefferson e o teatro seletivo da justiça brasileira
- Maria Julia Araujo
- 31 de mai.
- 3 min de leitura

A prisão do funkeiro MC Poze do Rodo, na manhã de quinta-feira (29), reacende um debate incômodo, mas necessário, sobre os contrastes no tratamento policial e midiático entre diferentes figuras públicas no Brasil. Acusado de apologia ao crime e suposto envolvimento com o tráfico de drogas, o artista foi detido por agentes da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) em uma operação marcada pela ostensividade e rapidez. Apesar de não apresentar nenhum tipo de resistência, o cantor foi retirado de sua casa algemado, sem camisa e sem chinelo, impedido de ter o mínimo de dignidade e, a todo momento, sendo filmado. Imagens da prisão, manchetes incisivas e reportagens que reforçam estigmas sobre o “criminoso da favela” invadiram os noticiários como um espetáculo.
O contraste torna-se gritante quando colocamos lado a lado a prisão de MC Poze e a de Roberto Jefferson, ex-deputado federal e figura central da extrema-direita brasileira. Em outubro de 2022, Jefferson foi preso após resistir à prisão com violência, inclusive atirando granadas e armas de fogo contra agentes da Polícia Federal. Mesmo diante dessa clara ameaça à vida dos policiais, a operação de sua prisão foi marcada por cautela, tentativas de negociação e um tratamento que, no mínimo, evitou qualquer uso excessivo da força ou humilhação pública. Mais do que isso: Jefferson ainda foi retratado por parte da mídia como uma figura “controversa” ou “descontrolada”, jamais como criminoso comum.
Essa discrepância revela uma operação seletiva da justiça e das forças de segurança: um corpo negro, periférico e funkeiro, como o de MC Poze, é alvo fácil para o espetáculo penal. O simples conteúdo de suas músicas, recheadas de linguagem de pertencimento à favela e experiências de sobrevivência urbana, é tomado como prova de envolvimento com o crime. Já um político branco, de elite e aliado de figuras poderosas, mesmo quando comete crimes graves e visíveis, é tratado com civilidade.
Diante disso, é preciso se perguntar: a prisão de MC Poze vai acabar com o tráfico de drogas no Rio de Janeiro? Vai enfraquecer o poderio das facções? A resposta é evidente: não. O encarceramento do artista pode até atender aos interesses simbólicos de "limpeza da imagem pública", mas não enfrenta as raízes do crime organizado, que passam pela desigualdade social, corrupção institucional e abandono das comunidades periféricas.
Ao invés disso, a prisão de Poze parece uma tentativa clara de deslegitimar sua reputação pública. Seu sucesso como funkeiro, com milhões de seguidores e uma forte influência cultural entre os jovens de periferia, incomoda uma ordem social que resiste a ver corpos negros ascenderem por fora das estruturas convencionais de poder. Quando MC Poze canta sobre sua realidade, está visibilizando uma vivência silenciada — e por isso mesmo se torna alvo.
A cobertura da mídia, por sua vez, reforça esse enredo. Ao invés de adotar um tom investigativo e crítico, muitas matérias simplesmente ecoaram a versão da polícia, transformando o caso em mais uma narrativa de “bandido preso”. Poucas foram as análises que buscaram entender o contexto, os indícios reais ou mesmo escutar a defesa do artista com o devido peso.
Em última instância, o que está em jogo aqui não é apenas a figura de MC Poze, mas o modo como o Brasil encara seus próprios fantasmas: racismo estrutural, desigualdade social e um sistema penal seletivo que pune com rigor os marginalizados, enquanto protege e ameniza os crimes de seus privilegiados.
As opiniões expressas pelos autores pertencem a eles e não refletem necessariamente a opinião do 4Estações.
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