Elza Soares: A Voz da Mulher Negra
- Péricles Hortênsio
- 8 de mar. de 2022
- 6 min de leitura
Atualizado: 25 de out. de 2022
No Dia Internacional das Mulheres, conheça um pouco da trajetória da artista
Elza Gomes da Conceição, ou simplesmente Elza Soares, como era conhecida, foi uma importante cantora e compositora brasileira. Com mais de 60 anos de carreira e uma história surpreendente de luta e superação, Elza se consagrou como uma das maiores artistas do MPB, dona de uma discografia que conta com mais de 30 álbuns e reconhecimento internacional. Infelizmente, no dia 20 de Janeiro de 2022, Elza faleceu de causas naturais aos 91 anos, em sua casa no Rio de Janeiro. Hoje (08), no Dia Internacional da Mulher, conheça um pouco sobre a trajetória dessa artista incrível.
Infância e Primeiro Contrato
Elza nasceu no dia 23 de Junho de 1930, na Favela da Moça Bonita no Rio de Janeiro, onde hoje fica a Vila Vintém. Sua família humilde era composta por seu pai, um operário, sua mãe, uma lavadeira, e seus dez irmãos. Em entrevista para o Conversa com Bial, Elza revelou que descobriu que gostava de cantar quando era bem pequena e costumava brincar com o alcance de sua voz enquanto ajudava sua mãe a carregar baldes pesados de roupa.
A infância da cantora foi interrompida quando, aos 13 anos, seu pai a obrigou a casar-se com Lourdes Antônio Soares, um amigo dele que tentou abusá-la. Seu pai, ao se deparar com a cena de abuso, arranjou o casamento entre sua filha e Alaordes, como era conhecido, pois acreditava que a “honra de sua filha só estaria limpa através do casamento”. Elza relata em sua biografia que sofreu muito ao longo desse casamento, pois não amava Alaordes e foi vítima de violência sexual e física frequentemente. Nesse casamento, a artista teve seis filhos, sendo que o primeiro nasceu quando ela tinha apenas quatorze anos de idade. Aos quinze anos, seu segundo filho faleceu de pneumonia, pois Elza e seu marido não tinham condições de comprar remédios para o tratamento da doença.
Quando seu marido e seu outro filho adquiriram a doença, Elza precisou arrumar maneiras de adquirir dinheiro para arcar com os custos dos remédios, por isso, arrumou emprego em uma fábrica de sabão e alguns serviços como faxineira. Em 1953, Elza se inscreveu para participar do programa Calouros em Desfile, apresentado pelo compositor Ary Barroso.
Sem condições financeiras para roupas, Elza apareceu no programa com o cabelo preso em uma maria chiquinha e utilizando um vestido emprestado de sua mãe, que tinha vários quilos a mais que ela. Por isso, utilizou diversos grampos de fraldas para botar o vestido no lugar. Ao subir no palco, a plateia explodiu em gargalhadas, e Ary debochou de Elza, perguntando: “de que planeta você veio, minha filha?”. Elza, sem se abalar, respondeu rapidamente: “do mesmo planeta que você. Eu vim do planeta fome”. Assim que começou a cantar, a artista rapidamente encerrou todo o deboche que recebeu da plateia e do apresentador e, após a sua performance, Ary Barroso anunciou que naquele momento acabava de nascer uma estrela.
Elza ganhou a competição e conseguiu dinheiro para arcar com os custos dos remédios. Enquanto seu filho conseguiu se recuperar da doença, seu marido morreu pouco tempo depois. Após o falecimento de seu ex-marido, a cantora passou a se apresentar em bares e programas de televisão e foi convidada para sair em turnê pela América do Norte e para alguns países da América do Sul. Sua primeira turnê internacional foi na Argentina, em 1958. Contudo, ela sofreu um golpe de seu então empresário, que desapareceu com todo o seu dinheiro, forçando Elza a se apresentar por conta própria para conseguir voltar ao Brasil. Nesse período, seu pai faleceu e Elza não conseguiu ir ao velório. Quando retornou, em 1959, a cantora Sylvinha Telles apresentou Elza ao seu marido Aloysio de Oliveira, produtor da gravadora Odeon. Com isso, ela assinou seu primeiro contrato com a empresa e, em 1960, lançou o seu primeiro álbum Se Acaso Você Chegasse, que foi um sucesso de vendas por todo o país e tornou Elza a cara do Sambalanço, um subgênero do MPB.

Da década de 60 à década de 90
Após lançar o seu segundo álbum, A Bossa Negra, em 1962, Elza foi convidada para ser madrinha da seleção brasileira daquele ano, viajando com a equipe e se apresentando antes de todos os jogos do Brasil. Foi nesse período que Elza conheceu o jogador Garrincha, com o qual iniciou um romance. Contudo, o caso dos dois não foi visto com bons olhos pela mídia, pois Garrincha era casado. Com isso, Elza sofreu um enorme boicote de diversas rádios e passou a ser perseguida e atacada onde quer que fosse. A perseguição foi tanta, que a cantora chegou a ser impedida de se apresentar em um show na Mangueira e teve que sair do local disfarçada para que o público não a reconhecesse. Em 1966, Elza e Garrincha se casaram e tiveram dois filhos, Sara e Manoel Francisco, apelidado de “garrinchinha”.
Apesar de declarar que Garrincha sempre foi o seu grande amor, o casamento dos dois foi repleto de altos e baixos, com episódios de traições, violências domésticas e principalmente pelo abuso de álcool que o jogador mantinha. Elza não gostava de falar sobre o assunto publicamente, porém, já declarou em entrevistas que não denunciava o marido pelas agressões pois “ apanhava do álcool e não do marido, e que o Garrincha era uma das pessoas mais doces que ela já havia conhecido”.
Em 1969, outro episódio triste marcou a vida de Elza: a morte de sua mãe. Seu marido, Garrincha, insistiu para ir visitar suas filhas de outro casamento e Elza não quis ir junto, pois afirmou que teve um pesadelo horrível e estava com um mau pressentimento. Para acalmar sua filha, Rosaria Maria da Conceição, mãe de Elza, resolveu ir na visita com Garrincha. Porém, na volta, Garrincha capotou o carro e Rosaria foi arremessada para a estrada, morrendo na hora. O jogador sobreviveu, porém entrou em uma depressão profunda. Ainda em 1969, Elza e Garrincha começaram a sofrer uma enorme perseguição política pela Ditadura Militar e tiveram que sair do país, retornando apenas em 1971.

Em 1982, Elza se divorciou de Garrincha após anos sofrendo com o vício em álcool de seu parceiro e, no ano seguinte, Garrincha faleceu de cirrose enfática. A morte de seu ex-marido abalou a artista, levando-a a inclusive desistir de cantar. Contudo, em uma conversa com seu amigo Caetano Veloso, o cantor incentivou Elza a continuar e gravaram juntos a faixa Língua, que foi sucesso por todo o país, reabrindo as portas para Elza no mercado fonográfico brasileiro.
Em 1986, com a carreira musical a todo vapor, Elza passou por mais uma perda: a de seu filho mais novo, Garrinchinha, que morreu aos nove anos de idade em um acidente de carro. Essa tragédia acarretou Elza em uma depressão profunda, levando-a a abusar de drogas e álcool e ir morar fora do Brasil.
Durante a década de 90, Elza morou por muitos anos nos Estados Unidos e ao retornar para o Brasil em 1999, foi convidada para participar de um festival organizado pelo Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro, onde acabou sofrendo uma queda do palco e fraturando a coluna. A cantora passou por diversas cirurgias por conta do acidente, além de ter dificuldade para se locomover. Por conta da queda, anos mais tarde, Elza passou a se apresentar sentada.
Anos 2000
Um ano depois, em 2000, Elza foi premiada pela rádio britânica BBC com o título de “Melhor Cantora do Milênio”, em reconhecimento pela sua carreira brilhante. Em 2002, Elza lançou o álbum Do Cóccix até o Pescoço, que lhe rendeu uma indicação ao Grammy Latino. Ao longo dos anos 2000, teve diversos momentos icônicos, como a execução do Hino Nacional Brasileiro nos jogos pan-americanos de 2007 e o lançamento de seu filme autobiográfico My Name Is Elza, em 2008, que foi indicado ao Festival Internacional de Cine Guadalajara, no México, o maior festival de cinema da América Latina.
No ano de 2015, Elza lançou o álbum A Mulher do Fim do Mundo, com canções que falam sobre sexo, morte, racismo e negritude, elegido pela Pitchfork, uma revista internacional de crítica sobre música, como o Melhor Novo Álbum daquele ano. Em 2018 veio o álbum Deus é Mulher e em 2019 Planeta Fome, eleito como um dos 25 melhores álbuns brasileiros do segundo semestre de 2019 pela Associação Paulista de Críticos de Arte.
Em 20 de janeiro deste ano, a assessoria de Elza Soares informou que a cantora havia falecido de causas naturais, em sua casa, aos 91 anos de idade. O empresário da cantora comentou que o dia aparentava ser como qualquer outro. Elza acordou e fez mais uma sessão de fisioterapia, apenas apresentando um cansaço maior. Pediu para descansar e aparentava estar ofegante. Depois de um tempo, ela confidenciou aos familiares: "Eu acho que vou morrer". Rapidamente acionaram o médico da artista, que enviou uma ambulância para a residência. Neste meio tempo, segundo o empresário, o semblante da cantora foi mudando, até que ela apagou. "Foi uma morte tranquila, sem traumas, sem motivo. Morreu de causas naturais. Esse, aliás, era um grande medo dela: ter uma morte sofrida, por doença. Hoje, ela simplesmente desligou", contou ele
Diversos artistas nacionais, como Zeca Pagodinho, Crioulo e Alcione, e internacionais, como Beyoncé, homenagearam a artista. Elza Soares teve uma carreira brilhante, porém uma vida pessoal marcada por altos e baixos, em que precisou ter uma força descomunal para passar por cima de diversos obstáculos e fazer a sua voz ser ouvida. No Dia Internacional da Mulher, seu legado merece ser celebrado, pois Elza Soares representa a personificação da mulher negra e viverá para sempre em suas obras e em nossos corações.
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